PERU - CAPÍTULO I – Por que Machu Picchu?


Conhecer Machu Picchu era um sonho do meu ex-namorado. Se tornou meu sonho. Os sonhos dele costumavam se tornar meus sonhos, não sei se por comodismo ou falta de identidade. Talvez conveniência. Era conveniente que tivéssemos os mesmos planos para que pudéssemos executá-los juntos, do contrário deixaríamos de ser um casal.

E deixamos, mas continuamos os dois querendo ir pra Machu Picchu. Ele foi antes, com a namorada nova.

Ela é do tipo que gosta de tirar fotos usando a sua melhor cara de prazer, embora em algumas delas pareça um prazer que excede a dose de prazer normalmente despertada por aquele tipo de momento, algo como um sorriso grande e chacoalhado dentro de uma sala de museu cheia de visitantes intrigados diante de telas enigmáticas. Gosta também de fazer vídeos que parecem causar certo estranhamento por destoar da atmosfera do espaço, tipo alguém que rodopia dentro de um templo sagrado, não sendo, claro, um dervish.

Não é em nada relevante confessar como essas imagens me chegavam, importa que chegavam e assim estavam em todo seu esplendor salpicado de vexame. Ou era isso mesmo, verdade posta e acabada, ou eu que conseguia encaixar qualquer inconveniência insultante nos seus gestos.

Certo é que fiquei a testemunhar demoradamente a imagem dos dois por entre aquelas ruínas mágicas, ele em trajes esportivos e ela toda maquiada, revestida de uma lã fina, carregada de colares, pulseiras e brilhantes onde era possível haver brilhante.

Ele não gosta disso, eu pensei, com alguma satisfação discretamente atravessando meus lábios. Ele não gosta dessa maquiagem, dessa impertinência, não gosta de qualquer tipo de afetação.

Não gosta, mas então por que ela? No meu conceber o gosto dele era formado apenas por mim, por tudo que eu era, e eu jamais seria a madame das montanhas. Logo, aquela união era improvável e fadada ao fracasso. Fadada ao fracasso? Mas estava durando já fazia quase um ano e a minha lógica parecia não servir a nada que não à ilusória paz de dormir pensando que, separados, estaríamos ambos miseráveis cada um a seu modo.

Esperei passar três meses da viagem do casal para começar a preparar a minha. Não queria o quente daquelas pegadas me assombrando, o perfume dela impregnado no vapor das sopas de quinoa, aquela risada ecoando nos corredores das trilhas incas. Mas o que eu queria? Eu me fazia essa pergunta a todo momento.

Queria, talvez, que ele visse e preferisse ter feito tudo comigo, porque eu não faria aquela cara nas fotos, porque não me pintaria pra entrar no mato, porque poderia subir as montanhas sem protestar contra o suor manchando roupas caras, sem reclamar do desequilíbrio com as pedras, já que estaria de tênis e não de salto.

Comprei meu destino para Cusco, com uma escala de poucas horas em Lima. Seriam 13 dias. Fiz um roteiro aberto, com possibilidade de um pulo na Bolívia eventualmente. Tudo a depender de uma métrica muito objetiva e precisa, do meu feeling.

Costumo deixar bastante espaço para o acaso, e me refiro a qualquer sorte de acaso. Me afeiçoar muito ao sorvete de uma cidade, à rotina de um restaurante seguido de um café com vista, a uma repentina necessidade de muitas horas de sono, e, claro, a alguém.

Paixões ou amigos. Conhecer pessoas, culturas, novos modos de pensar e existir que me permitam escolher o que melhor me sirva. E eu precisava desesperadamente encontrar um novo modo de existir.

Como seriam poucas horas em Lima, não me detive muito na pesquisa. Normalmente confio que cidades grandes têm deslocamentos simples que não demandam muito planejamento, que vou chegar no aeroporto e logo me inteirar das formas de acesso ao centro, por exemplo. E, não raro, os preços são melhores do que na compra antecipada, já que há várias empresas disputando o seu dinheiro, não só aquelas que dispõem de uma estrutura de atendimento online.

Peguei um táxi e escolhi o bairro Miraflores, pelo nome literário e por ficar à beira-mar. Já havia lido o nome em um dos livros do Mario Vargas Llosa, o Travessuras de uma Menina Má, de modo que as linhas desse bairro já descansavam dentro de mim em algum lugar. É também o bairro de um dos restaurantes banbanbãns, estrelado, lotado, com filas de espera de meses, mas em nada inacessível comparado aos preços de São Paulo: o La Central.


Vi que era perto da orla e decidi bater lá na porta, de cara amassada e mochila nas costas mesmo, isso pra testar a minha sorte e a humildade do atendimento. Se me olhassem feio eu olharia de volta e estava feito. Nada seria capaz de arruinar minha primeira experiência.

Sempre me empenho na chegada. É como começo de paquera. Dou o meu melhor e instintivamente só procuro as qualidades, mas sem perder o senso de alerta.

Tinha espaço no balcão. Uma das vantagens de estar só é caber em muitos lugares de improviso, na van, no tour, no bar e, claro, no restaurante. Comi e fiquei em paz na orla, tomando um café, enquanto olhava dois paraquedas voando.

Fiquei por duas horas tirando fotos do desenho que formavam no céu. É recomendável planejar bem uma viagem para não perder tempo, dizem. Mas, entenda-se, para perder onde você quiser perdê-lo. As horas em Lima dedicadas à contemplação dos paraquedas me pareceram um ótimo investimento. As fotos soavam artísticas naquela ocasião. Hoje vejo que não passam de imagens triviais de dois pontos quase insignificantes no espaço.


O belo e o extraordinário estão sempre bem compostos por doses de perspectiva.


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