CAPITULO II – Primeiro dia em Cusco


Primeiro dia em Cusco. O ideal seria aguardar cerca de três dias, aclimatando-se, antes de ir a Machu Picchu, de modo que teria bastante tempo por lá.

Já começava a sentir distante a memória do meu ex-namorado tamanha a avalanche de estímulos. Estava com medo do soroche, o mal da montanha. Falava-se disso em todos os guias e blogs, comentava-se nos cafés, era preciso comer leve, não fazer muito esforço e estar atento à respiração.

Mascar folha de coca me parecia ser a técnica mais genuína e honesta para driblar o soroche, já que se via nas mãos dos camponeses como parte de sua esplêndida indumentária. Nada de pílulas de farmácia, essas caras e artificiais, acondicionadas em embalagens estéreis e coloridas, que me pareciam especialmente voltadas aos turistas que não confiam no poder magnânimo da natureza e estão sempre prontos a gastar à toa.

Afora o leve sentimento de transgressão em carregá-las, gostava de – já com falta de ar –   sentar na calçada, sacar um punhado de coca da bolsa e me pôr a mascá-las com algum ar de autoridade no assunto, como alguém versada nas armadilhas do corpo e nas maneiras astutas de desarmá-las.

Fui à feira da cidade. Eis uma boa maneira de ver o que o povo come, o que existe somente naquelas prateleiras, de desvendar seus hábitos, vícios, questionar a cadeia industrial e comercial por detrás de cada canto. Costumo ficar olhando os rótulos para ver o que é produzido no local, o que é importado, e passo um tempo pensando naquelas até então improváveis relações comerciais, na razão de um azeite tunisiano ou de uma goma marroquina estarem sendo vendidos justamente ali.

Parei em uma barraca com frutos desconhecidos onde se destacava um homem por estar vestindo roupa social em meio a tanto improviso e simplicidade. Era grisalho, alto, magro, de pele amendoada e olhos indígenas, já avançado para além dos cinquenta anos. Ostentava uma ampla careca, mas não parecia em nada encabulado por tal condição. Pelo contrário, exibia uma confiança que não sugeria ser resultado de terapia ou simples vocação, mas galgada paulatinamente com as voltas tantas da experiência.

Ele comia com vontade aquela fruta aguacenta do tamanho de um punho fechado, ovalada, rosa por dentro e por fora, com uns pontos pretos em sua casca. Comia molhando as mãos e deixando pingar ao guardanapo que apoiava embaixo, mas sem se sujar, tal como se espera de um homem dotado de elegância.

Me sentei ao seu lado e perguntei o que era. É tuna. É retirada de cactos, me contou mostrando intimidade com a fruta. Não me lembro quem primeiro convidou a caminhar, se eu ou ele, mas seguimos juntos naquele dia.



Era boliviano, engenheiro, havia morado na Armênia, país de onde vieram meus bisavós paternos quando fugiram do genocídio provocado pelos turcos. Sempre quis ir para lá. Ele disse que iria comigo no ano seguinte se eu quisesse, que falava a língua, que conhecia as rotas todas, que tinha gente chegada pra garantir a nossa hospedagem, que tinham a melhor conversa e cozinhavam os melhores pratos, e eu disse que sim, sim, mas claro, e ficamos discutindo, de agendas abertas, apenas a singela circunstância das estações, que alterariam um plano ou outro.

É bonita a forma como você confia nas pessoas, mas deveria ter mais cuidado, ele me disse. Respondi apenas Costumo ter sorte.

Já no dia seguinte ele queria que eu remodelasse o meu roteiro, para que lhe acompanhasse no seu. Os passeios seriam quase os mesmos, apenas em dias diferentes e com agências distintas.

Eu poderia acompanhá-lo, sem problemas, tínhamos uma conversa fluida, era inteligente, culto, gentil, mas eu senti certa mudança na cadência da nossa companhia. A sisudez e segurança do princípio foram sendo tonalizadas de certa carência impositiva, não vá agora, tome café amanhã comigo, este prato é melhor do que aquele prove do meu, pronunciadas com um novo tom de voz, de todo mais afetuoso, mais peculiar às relações longevas, o que parecia fugir dos meus planos ou da minha expectativa para aquele lugar e para a nossa relação.

Gosto de viver romances por onde eu passo. Me entrego, sem reservas, aos meus encantamentos, ainda que às vezes me confunda sobre qual seria a natureza da relação: se parte do meu desfrute cultural, uma simples lembrança que figurará entre fotos, chaveiros e tickets ou se algo significativo o bastante para promover uma transformação na estrutura na minha vida.

Não era a questão da idade, embora tamanho degrau tampouco deixasse de ser um obstáculo. Uma vez uma amiga me disse que não saía com homens mais velhos porque queria alguém que fosse viver mais. Era de uma verdade tão brutal e óbvia. Por que apostar em alguém que, caso não sejamos atravessados por uma tragédia, deve partir antes? Mas também qual a relevância disso para nós, hoje, já que a maioria das relações nem sequer dura tanto? Quanto mais o tempo de uma vida inteira.

A ideia dela estava carregada de um romantismo que eu não tinha mais. Eu só havia acreditado nisso por uma vez, e essa relação tinha acabado, levando consigo a minha antiga fé cega na perenidade dos vínculos. Só esperava bons encontros, por qualquer tempo que fosse.

Rompemos, eu e o boliviano, embora eu não tivesse uma explicação convincente para isso. Prefiro tomar café da manhã mais tarde. Quero fazer o roteiro com a minha agência mesmo. Foi o que eu disse e recebi em troca uma despedida amargurada, com débeis promessas de contato futuro, me avise se vier a La Paz, te aviso se for a São Paulo, e nem uma palavra quanto aos planos de viagem à Armênia.

Levei alguns anos de vida madura para aceitar que nem sempre eu precisava dar boas razões para os meus planos ou preferências, convencer as pessoas de que eu iria fazer a minha vontade e não a delas sem precisar avançar pelo caminho da razão inevitável ou gravemente irremediável.

Claro que seria menos traumático dizer A agência não devolve meu dinheiro, vou ter que fazer com eles. Tomo um remédio às 10h que exige jejum, por isso só posso tomar café da manhã mais tarde, mentiras que me poupariam maiores desafios retóricos ou o custoso testemunho de ver uma face transfigurar-se toda em decepção.

Mas eu não disse, e eis um diminuto, embora nada desprezível, triunfo pessoal.

Tirei, então, um dia só para ficar no hostel lendo. Estava frio, nublado, chuviscando às vezes. Sentia minha mente esgotada de tantas abordagens nas ruas para comprar chaveiro, lã boa, lã ruim, aquarela, maconha, passeio, entrar em restaurante, fazer massagem, dar esmola, trocar dinheiro. Eu só queria o silêncio, nenhum pedido, nenhuma proposta, nenhuma súplica.



E tirar um dia inteiro para ler, com tantos passeios básicos pendentes, ou seja, quando o mundo ia me condenar perpetuamente por não ter aproveitado a viagem, foi apenas libertador. Por diversas vezes eu nem conseguia ler, só paralisada olhando para o jardim vazio do hostel, sentindo o sabor da minha soberania sobre mim, e gozando do fato de que eu decididamente estaria perdendo um dia de viagem segundo as melhores convenções.


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