CAPITULO VI – O que significa decidir os próprios caminhos?
Propunha um encontro às 17h, na praça ao
lado do hostel. Teria, portanto, cerca de três horas com ele antes do meu
ônibus sair.
Passei antes no banheiro, e me detive
perplexa diante do espelho. Roupas largas com bolsos grandes, suor, olheiras, um
rabo de cavalo e a indisfarçável palidez de quem ainda se recuperava de uma
infecção alimentar. Nada de maquiagem, perfume, decote, cabelo armado. Logo me
conformei e até senti despontar dentro de mim certa curiosidade com um primeiro
encontro, assim, excessivamente honesto, sem quaisquer manobras de sedução. Fui
até lá caminhando num passo lento, mas senti que estava ofegante.
Conhecer uma pessoa nova é sempre
perturbador. Fascinante, mas perturbador. Qualquer movimento é potencialmente
fatal. Exige muita energia, atenção constante e uma boa dose de traquejo na
arte do improviso. São mergulhos rápidos em um universo totalmente estranho, então
é preciso fazer as perguntas certas, ser comedido nas respostas e manter uma
elasticidade de humor, para suavizar qualquer deslize. Quando tomados de
encantamento, nos fragilizamos. Quando tomados de repulsa, nos embrutecemos. Uma
armadilha para qual muitos de nós caminham cegamente tantas e tantas vezes. Eu
estava em direção a mais uma.
Parecia ele sentado, na mureta ao lado da
catedral.
Era o cara do hostel.
Vestia uma camisa xadrez de malha, óculos
e sorria o mesmo sorriso tímido da foto. Cheguei e me sentei ao seu lado. Nos
viramos um para o outro e ficamos sorrindo em silêncio alguns instantes. Eu
estava confortável ali apesar do estranhamento com aquele conforto, já que
estava ao lado de um completo desconhecido. Tínhamos pouco tempo, mas parecia
não haver pressa. A angústia que me consumia antes da chegada foi repousando, e
meu coração parecia encontrar certa harmonia rítmica.
Ele começou a contar de si. Era de
Arequipa, morava na Espanha e se mantinha lá para estar perto da filha de
quatro anos. Se chamava Sol, me mostrou uma foto.
Contei de mim, me limitando ao percurso no Peru, porque aquela era eu a partir de então. Em algum momento passamos a ficar de mãos dadas, mas não sei dizer qual. A naturalidade daquela aproximação, daquela intimidade que parecia ter nascido antes em outro lugar, me atravessavam de emoção. Eu poderia voltar a me apaixonar, ficou claro para mim naquele momento. Eu não lembrava mais como isso acontecia, e era tão simples. Talvez bastasse um único encontro, bastasse sentar perto, bastasse encostar as mãos.
O dia começou a escurecer anunciando o seu
fim e também o nosso. Mas eu queria fazer com que durasse. Ele sairia naquela
noite do hostel e passaria a semana no apartamento de uma amiga, que estava
vazio. Me ofereceu que ficasse com ele.
Pensei em adiar meu retorno, eu queria dar
vazão àquele sentimento, conhecer aquele homem, estar à sua volta por mais
tempo.
Mas eu não queria correr o risco de
estragar o curso daquela história.
A lição estava posta. Era de fé, fé em
mim, fé no outro, fé nos encontros. Mas principalmente de firmeza nos meus
caminhos. Aquele seria um desvio que eu queria de fato fazer? Como saber o que
era decisão minha, livre e espontânea, e o que era mais uma vez sujeição ao
outro, aos seus desejos, aos seus planos e projetos? O meu plano era voltar para o Brasil. O dele era ficar em Arequipa. Era possível, no momento
da escolha, ter clareza disso?
Eu disse que iria embora, sem dar uma
razão justa, nem para ele nem para mim. Nos despedimos sem lamentações. Ele
pediu meu endereço, disse que me enviaria uma camiseta com o logo do seu box,
para que eu guardasse de lembrança.
Me colocou no táxi e fui para a rodoviária.
Cheguei no Brasil e esperei ativamente a
chegada da camiseta, sentindo o gosto de cada dia de ausência, por três meses.
Em certos momentos, me permitia fantasiar a chegada dele mesmo à minha porta,
vestindo a camiseta prometida.
Essa poderia ser a bela história do começo
e eu sempre contaria a partir daí.
Em outras vezes, quando atravessada do
ácido amargo do pessimismo, imaginava ele pedindo o meu endereço por simples
educação romântica. Convém aos românticos plantar a semente do futuro, com o
que podem passar o resto da vida a apoiar a própria existência, já que a eles a
fantasia consegue ser mais concreta do que a realidade.
Nunca chegou, nem uma explicação, que
tampouco eu exigi.
Partir de Arequipa, naquele momento, pode
ter sido uma decisão acertada ou talvez a perda de uma grande chance. Algo que
eu nunca saberia, mas eis o dilema que acompanha toda decisão, das mais graves
às mais ínfimas.
Havia compreendido naquela viagem que não perseguiria
mais outro percurso que não fosse o meu, mesmo que eu jamais soubesse qual
caminho teria sido criado só por mim, qual eu teria copiado, um pouco me
inspirado, ou apenas embarcado, sem saber a quem pertencia. Isso porque para me
pertencer o caminho não precisaria ter sido idealizado por mim em seu todo,
desde o começo.
Trocar a passagem e aceitar o convite para
seguirmos juntos mais dias poderia significar tanto uma livre escolha como uma
sujeição. Ceder ao outro, aos seus planos e desejos nem sempre seria um gesto
de submissão. Dependia apenas da minha perspectiva, de sentir a minha vontade
presente em cada decisão.
Ainda que a minha ida a Machu Picchu, para
dentro do mato, das trilhas tivesse sido sugerida e inspirada pelo meu
ex-namorado, e impulsionada pelo amor que eu sentia por ele, foi através de seu
convite eu encontrei um aspecto meu até então desconhecido.
Era apenas inexplorado, mas era meu. Desde o início.
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