CAPÍTULO III - A caminho de Machu Picchu
Conheci uma argentina no hostel e descobrimos
que iríamos no mesmo dia para Machu Picchu e ficaríamos no mesmo hostel em
Águas Calientes, o que não era tão ao acaso já que se tratava da mesma rede
daquele em que estávamos em Cusco, e que era ótima, a Ecopackers. Ambas
havíamos comprado a entrada para escalar a montanha mais alta, Huayna Picchu.
A entrada para Machu Picchu não contempla
a entrada para as duas montanhas localizadas em seu interior, a Machu Picchu e a
Huayna Picchu, o que deveria ser comprado à parte.
Como todas as minhas decisões, eu ainda
estava em dúvida acerca de qual subiria até o momento fatal, ou seja, quando
ainda estava na fila, chegando a minha vez de ser atendida. Estava com medo de
fazer o trajeto mais desafiador, embora parecesse viável para alguém com a
minha idade e preparo físico mediano.
Foi o meu ex-namorado quem me apresentou o
prazer da trilha, que não era nada prazeroso ao princípio. Foi pra isso que
eu caminhei quatro horas com uma mochila pesada nas costas? Pra chegar em lugar
algum com vista nenhuma? Cadê o arco-íris, o pote de ouro, a cachoeira mágica? E
tenho sede, fome, dor no joelho, coceira, unha quebrada, que bicho é esse, vai
me matar, pelo amor de deus, e francamente, nunca mais, porque ora, veja, pagar
pra sofrer, quando eu poderia estar numa banheira quente, tomando um drink,
vista pro vale... Essa era eu nas primeiras expedições, um desafio que ele
enfrentava com gentil resiliência.
Com ele eu me sentia segura de arriscar,
ele sempre conseguia prever uma solução para o que me parecia imprevisível:
pílulas para purificar a água, comidas que não estragavam, cordas onde segurar
nas travessias mais íngremes, o remédio certo para a dor inevitável. E ainda se
oferecia para carregar tudo em sua mochila, a minha parte, inclusive, sem nem
mesmo deixar transparecer a injustiça e desequilíbrio dessa solução, só para
tornar a experiência menos penosa para mim, para que continuássemos executando
juntos os nossos planos.
Os planos que eram dele, é verdade, mas
que foram se tornando meus, e eu segui realizando tudo à minha maneira
improvisada e caótica.
O projeto era chegar à noite em Águas
Calientes e sair logo de madrugada para não enfrentar longas filas em Machu
Picchu. A recomendação era de que, para quem fosse subir Huayna Picchu, que
fosse logo cedo, pois os caminhos eram estreitos e, com o avançar da hora, pessoas
menos preparadas fisicamente iam criando congestionamentos incontornáveis, já
que paravam de subir e não haveria maneira de atravessá-las pela falta de
espaço para ultrapassagem. Dessa maneira, não haveria outra solução que não
esperar, provavelmente segurando em algum galho fino e frágil bem ao lado de um
precipício, o que tornaria o caminho muito mais demorado e perigoso.
Se acabar a sua água no meio do deserto, é
mais provável que alguém que te ame divida com você a própria água. Se você
desmaiar e ficar para trás, é mais provável que alguém que te ame note a sua
falta no grupo. Esses pensamentos me faziam ter medo da
trilha solitária, sem o amor, a firmeza do planejamento e a proteção do meu
ex-namorado.
De toda forma, estava mais tranquila de fazer
a travessia com a argentina. Embora ela não me amasse, nem como amiga, já que
mal nos conhecíamos, certo é que já se havia firmado entre nós um laço de cuidado
pelo simples companheirismo, ainda que mais ao nível de segurar a mochila
enquanto a outra amarra o tênis, do que propriamente dividir a água no deserto.
Fizemos em um tempo bom, cerca de 2h30 até
o topo, sem grandes percalços. Essas caminhadas silenciosas na natureza são
capazes de evocar verdades íntimas até então insuspeitadas. Quis saber qual seria
a verdade de meu ex-namorado, se eu a compunha em alguma instância. Me apoiava
em um galho e me perguntava se ele havia se apoiado ali também, se aquela teria
sido a melhor decisão para passar por aquele trecho tortuoso, porque, a mim, suas
soluções sempre transpareciam maior grau de correção e sensatez e,
essencialmente, de segurança.
Aos poucos, com a passada ritmada e o
verde monumental do caminho, eu fui serenando, minha mente foi se aquietando e
eu passei a ver apenas o que estava à minha frente e a ouvir apenas a minha
respiração. A ouvir, também, em cada breve parada, uma profusão de línguas em
suas mais variadas musicalidades, de sons de risadas, de barulho de flashes, de
embalagens rasgando, de latas se abrindo.
Mas a confusão do meu entorno passou a
contrastar com certa ordenação interna. E eu senti como se o oxigênio rarefeito
limpasse meus brônquios, renovasse meu ar, meu sangue, e, de passo em passo,
também meus sentimentos. Todos eles. Rejeição, ciúme, insegurança, solidão,
insuficiência, ressentimento.
Olhava novamente para os galhos e sentia
que eram meus, aquela montanha era minha, aquele caminho era meu, e era de todo
irrelevante que não fosse o melhor percurso, que não ostentasse o selo da sua excelência,
de seu bom senso, de sua temperança e alto nível de cautela, porque aquela era finalmente
a minha perspectiva, e eu havia encontrado um jeito satisfatório de estar ali,
e sobrevivia sem as pílulas de água, sem as comidas frescas e sem as cordas de
apoio.
Me senti percorrendo o Caminho de Santiago,
como a peregrina que inicia seu trajeto por devoção, para expiar uma dor
inominável, e de repente algo simplesmente a ilumina e acaba por libertá-la no
meio da estrada, expurgando de si aquela carga disforme que pesava sob seus
ombros.
Machu Picchu é uma cidade sagrada que
ficou preservada do contato com o resto do mundo até o começo do século XX. Era
considerada a cidade perdida dos incas, e era tão inacessível que não foi destruída
pelos espanhóis. Representa a reminiscência, em força e magia, da essência de
um povo massacrado. Esses fatos, em toda exuberância de realidade e metáfora,
pareciam se encaixar na minha travessia.
Era preciso seguir. E eu sentia
necessidade de celebrar algo. Não tinha ao certo o que, mas celebrar.
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