CAPÍTULO IV - O sofrido retorno a Cusco


Durante todas as viagens, por vezes me permito pequenas extravagâncias, alterno vários dias de hostel, dividindo quarto com 4, 6, 8, 10 até 15 pessoas, com um dia em um hotel mais aconchegante, pra dormir sozinha, pra ter um bom café da manhã, pra poder caminhar nua pelo quarto falando ao telefone, ouvindo música, pra não me preocupar em levarem meu dinheiro, celular, documentos.

Nessas ocasiões constato o verdadeiro privilégio de uma suíte, e me consinto o capricho de ter um banheiro só meu, e poder acessá-lo sem ter de escalar uma cama beliche, muitas vezes frágil e barulhenta, nem atravessar um corredor gélido, com as suas infinitas portas e parcas luzes.

Também certas extravagâncias em matéria de restaurantes. Tinha sido um dia fisicamente exaustivo. Já havia feito o check out e precisava esperar algumas horas até a saída do trem de volta a Cusco.

Decidi ficar num bistrô que emulava a imponência e elegância europeias, onde circulavam garçons exímios na verdadeira arte de servir, desses cujos movimentos, por sua precisão e singeleza, são capazes de te transportar para outras paisagens, de te fazer crer dotado de singular dignidade, ou mesmo de fazer parecer, pelo simples requinte do empunhar em suas mãos, que aquela água, de envase ordinário, seria proveniente, talvez, dos alpes suíços. O tipo de ambiência que faz sentir como excepcional um sabor outrora comum.

O espaço parecia antigo, porém conservado. Estava vazio, mas não se passava por um estabelecimento rejeitado, soava, talvez, apenas inacessível aos comuns. Comi uma omelete em nada memorável, afora pela apresentação decorada, de todo necessária para justificar o preço exorbitante.

Entrei no trem, sentei, peguei meu livro e comecei a me sentir estranha.

Aquele primeiro alarme de que algo não vai bem. Um leve calafrio acompanhado de uma respiração curta, ofegante, mãos formigando, e a impressão de que estava começando a ficar pálida, mas ninguém por perto íntimo o suficiente para confirmar a minha suspeita, para com o dorso da mão sentir a minha temperatura. Não havia ao meu lado quem me assegurasse esse gesto universal que inaugura o cuidado para toda sorte de padecimento, do corpo ou da alma, e que pela delicadeza, ou simples atenção, já garantem algum conforto.

Chequei as horas para me certificar de quanto tempo eu ficaria presa naquele vagão, caso precisasse de ajuda médica imediata. Seriam duas horas até Ollantaytambo e mais quatro horas de ônibus até Cusco. O desespero se agravou em alguns graus após essa constatação, mas eu ainda me sentia sob controle.

Ao meu lado e ao meu redor todo estava um grupo enorme de espanhóis. Dividindo mesa comigo, três espanholas de cinquenta e tantos anos de idade.

Uma delas, já na saída, me pediu para trocar de lugar para que o marido a acompanhasse ao seu lado. Pela troca, eu passaria a viajar de costas para a direção em que o trem se deslocava, o que não era exatamente vantajoso para mim.

De todo modo, dizer não equivaleria a ter de tolerar a sua face aborrecida ou magoada por duas horas, cólera que possivelmente seria encampada pelo grupo, que poderia passar a me hostilizar e eles eram ampla maioria. E, dizendo sim, talvez eu cativasse o casal e seus confrades com a minha graciosidade e desprendimento. Com sorte, me renderia uma breve amizade.

Me ocorreu, por um instante, aproveitando da verossimilhança endossada pela palidez, lançar meus velhos argumentos trágicos da ordem da saúde, de que eu não poderia viajar sentada naquela posição, ao risco de grave desconforto estomacal, o que talvez me garantisse ambos os ativos em jogo naquele momento, tanto o clima amistoso como o assento original, mas senti que a ocasião pedia camaradagem. E cedi.

Não sem algum amargor. Não estávamos falando da criança que precisa estar colada à mãe. Me faltava empatia com aquele casal, aparentemente casado há décadas, que era incapaz de se separar alguns poucos metros durante algumas poucas horas, sendo que estavam em um ambiente seguro, confortável, por eles completamente dominado.

Pensei que talvez fosse ainda uma espécie de despeito da minha parte com casais interdependentes. É possível que eu fosse assim antes. Que também sentisse esse desamparo ao mínimo distanciamento.

Ganhei a simpatia daquelas mulheres. Passaram a me interpelar atropeladamente sobre as razões de eu estar só. Viajar sozinha é sempre uma questão intrigante para a maior parte das pessoas, especialmente pelo fato de ser uma viajante mulher. Não casou ainda? Não tem namorado? Não encontrou nenhuma amiga pra te acompanhar? O que os seus pais acham? Não tem medo? Quer ficar com a gente?

A resposta mais curta que eu dava era Eu gosto de viajar sozinha às vezes, com o que me devolviam olhares piedosos e incrédulos, como se eu escondesse a dramática razão verdadeira, provavelmente por seu caráter dolorosamente íntimo, e nem adiantasse persistir na pergunta.

Então reiteravam apenas a derradeira, movidos pela comiseração e pela nobreza de seus espíritos, Mas quer ficar com a gente?

Essa pergunta me remetia à infância, aos primeiros dias de aula no colégio novo, quando eu me encontrava indefesa justamente à penosa hora do recreio, e então alguma criança de alma velha, já muito talhada de generosidade, me convidava a partilhar de seu prestígio social.

As tantas ofertas de cuidado, os variados convites para ser agregada a diferentes grupos, por onde eu passava, só confirmavam a tese que eu havia sinalizado antes ao boliviano, acerca da minha natureza incauta, de que Eu costumo ter sorte, embora nessa afirmação contivesse a minha anterior certeza de que as pessoas são melhores do que se espera e mais reais do que os nossos medos.

Além, é claro, de não acreditarem que alguém caminha solitário por simples prazer, o que talvez nem eu acreditasse a princípio. Corri para o banheiro.

Lá continha um alerta nada sutil quanto à exclusiva destinação do toalete: a urina. A transgressão foi inevitável, mas a advertência ao menos me permitiu ter uma polêmica a ocupar minha mente enquanto duravam os longos minutos presa naquela cabine. As cólicas eram cíclicas e não pareciam evoluir para uma dor a um nível apaziguado que me permitisse voltar ao meu lugar e lá sofrer silenciosa e estoicamente até a estação final.

Nunca fiquei confortável na posição transgressora. Não me agrada pensar que alguém possa me confrontar com uma razão tida por definitiva e indiscutível para censurar minha conduta. É a lei. Mas qual o propósito de estabelecerem normas por vezes impossíveis de serem cumpridas? Esse questionamento já me assombrava no trabalho diário com as leis, mas ainda não me havia sido apresentado um caso prático tão eloquente.

Começaram a esmurrar a porta. Eu não tinha elementos para entender o grau de urgência de quem clamava pelo meu lugar, já que não diziam do que se tratava. Apenas batiam, de forma contínua e persistente, e eu gritava de volta e gritava e gritava Wait, calm down, e nunca nenhuma resposta. Deve ser só um cara grosso, impaciente, essas filas de banheiro sempre geram um clima de animosidade, eu entoava isso na minha mente para amenizar a angústia agora complementada por uma emergência alheia. Eu também preferia acreditar na minha versão, até porque eu não tinha forças para ceder a vez.

Passaram cinco minutos de suspensão daquele sofrimento, o que finalmente me deu segurança para sair. Me deparei com uma mulher oriental quase desfalecida no chão, amparada por um senhor, provavelmente o que teve forças para esmurrar a porta. Ela também não estava em condições de respeitar o aviso.

Voltei para o meu lugar.

Me dei conta que estava sem minha sacola de remédios porque havia deixado junto com a mala maior no hostel em Cusco, já que seria apenas uma noite em Águas Calientes. Meu corpo precisaria lutar sozinho.

Estava sem disposição física para voltar às conversas com as espanholas, mas o trecho de trem chegava próximo ao fim, o que me deu algum alento. Alento que se encerrou quando chegou o trecho de estrada, que seria de ônibus e duraria quatro horas.

O banheiro do ônibus estava quebrado, mas ao menos existia um banheiro, o que não era comum nos ônibus de lá, motivo suficiente para um suspiro de alívio. No entanto, não era possível dar a descarga. A cada uso, tudo se acumulava. E não me recordo quantas vezes me dirigi até aquele lugar, para além das vezes em que se dirigiram os outros 31 passageiros.

Sinto que experiências dessa natureza enobrecem o meu caráter, me revestem da couraça necessária para travar as futuras batalhas que certamente estão reservadas para mim. Dão novos limites e novas tonalidades para o que eu costumava chamar de indigno e intolerável. Ultrapassar essas provações seria a condição mínima para me cobrir de humildade e resiliência, garantindo a minha vitória lá na frente.

Eu mentalizava isso, prendia a respiração e fechava a porta do banheiro.

Cheguei em Cusco de volta e o ônibus estacionou em um local estranho que não era a rodoviária. Eu não estava em condições de investigar o porquê, apenas disse ao motorista onde era meu hostel e perguntei se dava para ir a pé. Dá, claro. É pertinho. Três quadras.

Eu não sei quem errou, se eu que perguntei errado, se ele que entendeu errado, se foi proposital, se de alguma forma ele sabia que eu havia usado tanto seu banheiro interditado, e, portanto, me odiava, eu apenas não pude compreender, mas era muito longe, ou longe o bastante para alguém no estado combalido e miserável em que eu me encontrava.

Eu precisava decidir se seguiria no dia seguinte para Arequipa.

Os guias de viagem tratavam Arequipa com certo desdém, algo como Se tiver tempo, dê um pulo lá. Não parecia fundamental. Era um ponto isolado no mapa turístico, sem outras atrações evidentes ao redor, e seriam mais 12 horas de viagem de ônibus, saindo às 7h ou às 22h. Eu não me sentia em condições físicas de suportar mais essa batalha, precisava me recuperar. Mas qual a segunda opção? Mais dias em Cusco?

No longo caminho até o hostel, já estava me convencendo de que meu destino era ficar por lá. Eu estava tão fraca que minha visão por vezes escurecia e eu precisava sentar em vielas úmidas, de chão batido, envoltas por terrenos baldios. Andava mais um pouco e voltava a parar.

Até que um senhor se aproximou de mim, enquanto eu estava de cabeça baixa na calçada, e eu aproveitei para perguntar O senhor sabe se essa rua fica aqui perto?, ele olhou brevemente a minha anotação e disse Não conheço. Você quer ver minhas pinturas? Eu respondi Eu não estou passando bem, não consigo ver nada agora, eu acho que a minha pressão... E ele Quer trocar dólares? Então eu repeti dando ênfase a cada palavra Eu-não-estou-passando bem... e ele arrematou Então fique com o meu cartão, me procure amanhã quando estiver melhor. Ele saiu e eu continuei sentada na calçada mais alguns instantes.

Entendi que não tinha mais disposição para ficar naquela cidade, onde eu não me sentia acolhida e, ao contrário, me sentia violentada pelo imperativo comercial que contaminava aquelas ruas tão bonitas.


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