CAPITULO V – O silêncio em Arequipa e a minha estreia no Tinder


Comprei dois litros de soro para desidratação e a passagem para Arequipa. Eu sabia de pouca coisa para fazer por lá: uma longa trilha para subir o vulcão Misti e um passeio pelo Cânion do Colca para apreciar condores. No entanto, os relatos sobre a trilha descreviam um caminho extenuante e com poucas compensações em matéria de visual. O atrativo, aparentemente, era de que poucas pessoas teriam terminado o trajeto. Atrativo, seria? Se nem saudável eu talvez tivesse condições físicas, doente tampouco. O cânion exigia ao menos três dias, e não havia garantia de que os condores apareceriam. Eu começava a entender por que as pessoas diziam que Arequipa não seria um destino indispensável.

Cheguei e me instalei num hostel no centro, era um casarão antigo, silencioso, com papel de parede de temas florais clássicos e maçanetas douradas. As pessoas que circulavam por lá não pareciam turistas, mas famílias de passagem pelo local.

O centro da cidade era lindo, todo acinzentado, construído com material vulcânico, o que garantia o apelido de Cidade Branca para Arequipa. 


No entanto, o clima nada turístico foi um choque, passados dias em Cusco e Machu Picchu, o que, controversamente ao que eu parecia ansiar antes, estava me deixando em um estado de solidão melancólica.

Pensei em ligar um aplicativo de encontros. Lá usavam o Tinder.

Na vida além férias, eu resistia a entrar em aplicativos por dois motivos principais.

O primeiro era de que escolher alguém pela imagem de uma foto não costumava ser um critério eficiente para mim, que desse garantia de um bom encontro. Não estou fingindo ser o tipo que diz beleza não importa, o que vale é o interior e blábláblá. Mas via que diversas vezes a pouca beleza era redesenhada pela inteligência, pelo senso de humor e perspicácia, ou a tanta beleza de pronto desmanchada por qualquer superficialidade, arrogância, somente perceptíveis com a atmosfera da companhia.

E também porque as pessoas, muitas vezes, mudam na hora do clique, perdendo a espontaneidade. Transparecem algo que não são, algo que aprenderam que deve ser positivo socialmente – ter mais poder, mais posses, mais sensualidade, mais espiritualidade – mas que soa estranho, deslocado nas fotos, talvez apenas porque não combinem com a encenação escolhida, ou, mais tecnicamente, não disponham do physique du rôle.

Pensava que, por essa limitação intransponível da escolha feita apenas pela imagem, investiria tempos largos em pessoas obviamente incompatíveis e, com certeza, em segundos, perderia pessoas formidáveis.

O outro motivo era de que eu achava que se a relação desse certo eu não queria contar aquela história do começo. Me incomodava pensar em mim contando aquela narrativa desalentada para todas as pessoas que me questionassem sobre como nos conhecemos: Eu e ele estávamos muito sozinhos e muito tristes de estarmos sozinhos e não irmos a lugares interessantes onde pudéssemos conhecer pessoas interessantes, então acessamos um serviço de encontros e gostamos da foto um do outro. Foi assim. Depois correu como de costume.

Eu ouvia essa versão repetidamente na minha cabeça.

Entretanto, ao mesmo tempo, eu constatava que lá estavam amigos próximos, ricos de interioridade, sabedoria e delicadeza, que se eu não conhecesse da vida, eu sentiria uma profunda sorte de conhecer no aplicativo, e via que esses amigos encontravam pessoas também ricas de interioridade, sabedoria e delicadeza, com elas construíam relações bonitas, cultivavam sentimentos verdadeiros e, juntos, durante pouco ou muito tempo, tornavam-se pessoas melhores, como em qualquer grande encontro na vida.

Fui vendo que contar a história do começo nem era tão importante, inclusive uma hora, cedo ou tarde, ela se perdia. Como foi que meus pais se conheceram mesmo? Minha mãe foi fazer uma consulta médica e ele a atendeu. Como eu conheci meu ex-namorado? Através de uma amiga, em seu aniversário. Pensando friamente, a maior parte das histórias começam de um jeito banal, que a gente conta rapidinho. Depois mesmo é que importa. A história do dia-a-dia que ficaria inscrita dentro de mim.

Que seja. Nem era isso o que eu realmente procurava naquele momento. Buscava apenas alguém para conversar, um nativo que me contasse coisas próprias de lá e me levasse a lugares que não estivessem nos roteiros turísticos. E, possivelmente – mas não obrigatoriamente – quem sabe até acontecesse qualquer coisa mais.

Mas essa era uma chance muito remota, porque eu considerava esses grandes encontros algo fruto de muito investimento, que requeria a perseverança e persistência de um atleta profissional do ofício, um resultado jamais possível para alguém que tinha só dois dias para treinar.

Conversei com uma pessoa apenas.

Era bonito, claro. Peruano. Forte. Tinha duas fotos, uma delas fazendo crossfit. Eu havia começado a praticar no Brasil fazia três meses, o que me fez pensar que teríamos algo em comum, ainda que eu nem me reconhecesse exatamente como alguém da comunidade crossfit. É preciso fazer grandes esforços para caçar compatibilidades a partir de fotos aleatórias e descrições taquigráficas, mas eu estava empenhada na tarefa.

A outra, era uma foto de rosto, em branco e preto, bem de perto, um close. Sorria um sorriso contido, usava óculos e tinha um olhar limpo, bom. Transparecia o olhar de quem está um pouco tímido pela foto, mas que gosta tanto de quem está por trás das câmeras, que, pela força do carinho, cede ao registro.

Gostei dele.

Iniciamos conversas triviais. Ele estava na cidade para instalar um box de crossfit. Ficaria lá por uma semana. Eu ficaria dois dias. O primeiro passei flanando sem qualquer direção certa, apenas procurando bons cafés e bons ângulos que ver e que fotografar. O segundo começava a correr naquele momento.

No caminho de saída do hostel cruzei com um homem que parecia aquele da foto. Ele olhou pra mim e não parou o olhar. Não deve ser ele, então. Ou será que eu tô muito diferente nas fotos? Olhei de esguelha para o espelho perto da entrada. É, tô com uma cara cansada. Mas eu precisava ir, o tempo era curto.

Decidi fazer um programa apenas. Um mosteiro. O Mosteiro de Santa Catalina. Fechava às 16h e meu ônibus era às 21h. Aquela tinha sido uma viagem com um percurso espiritual importante e naquele espaço eu sentia ser o porto de chegada da travessia.

Dizem que o verdadeiro encontro interior se dá no silêncio. Assim que eu entrei, a mensagem inscrita no arco da chegada e, portanto, não em uma placa informativa fria, mas na parede, no corpo do prédio, com tinta e letras grandes, era silêncio.


E não há silêncio no meio da tormenta, ainda que ela exista apenas do lado de dentro. Naquele espaço descobri que o verdadeiro silêncio vem acompanhado de ordem e beleza, possui cores vibrantes, vasos com flores frescas e se pode ouvir o som de um coral cantando baixinho.

Passei o dia lá, em paz, um pouco vagando por entre os dormitórios e salas de prece e um pouco lendo e anotando impressões. Parei para almoçar e me sentei defronte a uma garota bem branca, encostada de lado à parede vastamente azul do café, que tinha nas mãos um caderno e uma caneta.

Escrevia e me olhava vez ou outra, como quando a pintora precisa retocar o ângulo do nariz de sua modelo ou entender melhor as razões de seu olhar. Era uma menina bonita, sem traços de vaidade talvez porque mantivesse seu olhar sempre voltado para fora. Tão sozinha quanto eu e tão acompanhada de livros e cadernos e canetas quanto eu.

Mas naquele momento eu era apenas uma mulher suada, com roupas mal distribuídas entre frio e calor, uma mochila suja de terra, entornada sobre um prato de salada.

Eu não sabia o que mais se podia ver, o que mais se podia deduzir que não fosse o simplório e raso de alguém com fome e sem complexidades, uma burguesa com uvas na boca, fazendo seu piquenique no centro de uma pintura colonial qualquer, de um artista esquecido pela irrelevância de seus temas e precariedade de sua técnica.

Eu queria saber o que ela via para além de mim, quem seria eu na ponta de seu lápis, se ela enxergava no que eu havia me tornado após aquele percurso. Mas eu não soube.

Tiramos fotos uma da outra como quem quer registrar a paisagem e por acaso tem um estranho ali.



Poderíamos continuar depois com os registros que restaram. Não ficamos amigas, mas eu queria. Chamei ela de Martina.

Foi um prazer, Martina. Boa viagem, eu disse silenciosamente, como recomendava a etiqueta do local sagrado.

Parei para olhar o celular. Mensagem do peruano.

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